Risco e desequilíbrio nos contratos privados de construção civil

 

A importância da infraestrutura para o desenvolvimento econômico e social do país é notória: segundo estimativa recentemente feita pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o Brasil necessita de cerca de R$ 3,7 trilhões de investimentos em infraestrutura na próxima década, a fim de suprir gargalos em setores estratégicos como energia, saneamento, logística, mobilidade urbana, etc.[1]

No âmbito das relações privadas envolvendo os players que atuam em tais segmentos, há, muitas vezes, a necessidade de contratação de terceiros para executarem obras e serviços de engenharia de grande magnitude. Nestes contratos complexos, é recorrente, na prática, o surgimento, entre as partes, de disputas envolvendo a alegação de desequilíbrio contratual – quer por circunstâncias internas ao contrato (como, por exemplo, o descumprimento de determinada obrigação que incumbiria ao contratante previamente à execução das obras e serviços), quer por fatores exógenos que possam impactar sobre a economia contratual.

Segundo afirma Roppo, “o contrato é a veste jurídico-formal de operações económicas”[2]. Ingressar em um contrato implica, necessariamente, em assumir os riscos inerentes à respectiva operação econômica. Em razão dessa incerteza, as partes, ao contratarem, não são capazes de anteverem o resultado econômico final da operação, se está será lucrativa ou não, etc. O setor da construção civil é especialmente sensível nesse aspecto, sujeitando-se a uma miríade de riscos, cuja implementação pode vir a impactar no programa contratual.

A esse respeito, estatísticas divulgadas em relatórios anuais da International Chamber of Commerce nas últimas décadas dão conta de algumas peculiaridades do setor, a saber: a) tempo requerido para planejar, investigar, projetar e concluir a construção; b) quantitativo de pessoal envolvido em projetos dessa natureza; c) localização dos trabalhos de engenharia civil, muitas vezes em regiões inóspitas e sujeitas a intempéries; d) emprego de diversos materiais, tecnologias, etc., muitas vezes em caráter experimental; e) necessidade de participação de uma cadeia complexa de diversos agentes econômicos (fornecedores, fabricantes, subcontratados, etc.); f) riscos diversos inerentes aos empreendimentos.[3]

Neste artigo, pretende-se tecer algumas considerações, com apoio em precedentes jurisprudenciais, sobre o equilíbrio contratual nos contratos envolvendo o fornecimento de serviços relacionados à engenharia e à construção civil. Trata-se, aqui, não apenas do contrato típico de empreitada, disciplinado nos arts. 610 e seguintes do Código Civil, mas também outros arranjos negociais atípicos correlatos, a exemplo do contrato complexo denominado EPC Engineering, Procurement & Construction. Sobre tal arranjo contratual, Clóvis do Couto e Silva sublinha:

 

O contrato de engineering é um negócio jurídico complexo, porquanto, de regra, são feitos diversos contratos, parciais, seja com finalidade preparatória, seja executiva, que constituem, no seu todo, o aludido negócio jurídico. O seu conteúdo pode abrigar, assim, contratos de empreitadas parciais, de planejamento da obra, de realização de certas partes ou equipamentos, contratos de serviços, contratos de transporte, contratos de supervisão, sendo a sua totalidade o “contrato de engineering”. Configura-se, como um contrato atípico, que se desprendeu do modelo de empreitada, e que, conforme a complexidade da obra, poderia ter como partes, diversos figurantes, e não apenas um empreiteiro e o dono da obra, como sucedia, em regra, no modelo de empreitada previsto no Código Civil (…). Por esse motivo, não é possível descrever o desenvolvimento desse contrato em todas as suas formas; de um modo geral, ele supõe a existência de um projeto, realizado por empresas competentes para isso, projeto esse que depois é executado pelos empreiteiros.[4]

 

Sem prejuízo das eventuais diferenças que porventura possa haver entre a empreitada típica e o EPC, fruto da autonomia privada, ambos têm como função precípua, via de regra, a entrega da obra em termo certo[5] – o que torna tais arranjos contratuais altamente vulneráveis a riscos e desequilíbrios. Nesse contexto, passa-se a examinar os problemas mais comuns ocorridos na prática e como diversos Tribunais de Justiça Estaduais os vêm enfrentando.[6]

Um problema que surge comumente nos contratos dessa natureza diz respeito à precificação dos serviços a serem prestados. O legislador expressamente procurou enfrentar o problema do desequilíbrio resultante de precificação baseada em premissas dissociadas da realidade, o qual, em algumas hipóteses, poderá dar ensejo à revisão, nos termos do art. 620 do Código Civil: “Se ocorrer diminuição no preço do material ou da mão-de-obra superior a um décimo do preço global convencionado, poderá este ser revisto, a pedido do dono da obra, para que se lhe assegure a diferença apurada”.

É usual, ademais, que os contratos estabeleçam um valor meramente estimativo dos serviços, a serem prestados sob demanda, de sorte que o cálculo da remuneração do empreiteiro seja feito com base na medição dos serviços efetivamente prestados. Esse tipo de estipulação encontra respaldo no art. 614, caput, do Código Civil: “Se a obra constar de partes distintas, ou for de natureza das que se determinam por medida, o empreiteiro terá direito a que também se verifique por medida, ou segundo as partes em que se dividir, podendo exigir o pagamento na proporção da obra executada”.

Ocorre que, muitas vezes, os quantitativos efetivamente demandados pelo dono da obra são consideravelmente inferiores àqueles inicialmente previstos no contrato, dando ensejo a alegações de desequilíbrio por parte dos empreiteiros. Recentemente, o Tribunal de Justiça de São Paulo rechaçou esse tipo de alegação, em precedente ementado da seguinte forma:

 

Ação de ressarcimento – Contrato de empreitada mista (…) Contrato que tinha por objeto a execução de obra com significativa complexidade – Ocorrência de circunstâncias decorrentes de complexidade da obra que demandaram inúmeros ajustes no contrato – Preço da empreitada por unidade – Valor inicialmente previsto de caráter meramente estimativo – Desequilíbrio contratual que não se consuma pelos simples fato do valor total da obra não atingir o valor estimado – Previsão contratual expressa a esse respeito (…).[7]

 

O precedente envolvia um contrato de empreitada mista, no qual o empreiteiro fornece não só os materiais, mas também a mão-de-obra a ser empregada. O contrato destinava-se à execução de uma vasta gama de serviços (construção civil, montagem eletromecânica, suprimento de materiais e equipamentos, testes, comissionamento, etc.) e o preço fora estipulado por estimativa, a ser calculado com base no quantitativo de serviços prestados vezes o seu respectivo preço unitário. Segundo o precedente, se porventura, ao final do contrato, o valor total pago ao empreiteiro for inferior àquele originalmente estimado, tal circunstância não seria bastante para caracterizar desequilíbrio contratual.

Outro problema recorrente em matéria de construção civil diz respeito às condutas imputadas ao dono da obra que eventualmente possam reverberar sobre o andamento satisfatório dos trabalhos, impactando no sinalagma contratual.[8] É o caso, por exemplo, do descumprimento, pelo dono da obra, de obrigações prévias, tais como disponibilizar o local para execução dos trabalhos ou efetuar determinado pagamento em caráter antecipado.

Em determinado precedente referente ao contrato de empreitada para prestação de serviços de reforma de uma fábrica, o Tribunal de Justiça de São Paulo, após examinar o cronograma da obra, concluiu que a alegação de desequilíbrio, por parte do empreiteiro, não procedia, eis que a demora na autorização para início dos serviços não implicara em atraso significativo ao marco inicialmente acordado pelas partes no cronograma:

 

Empreitada. Partes que firmaram três contratos de empreitada. “Contrato Telhado”. Multa prevista na cláusula 8.8 devida. Ausência de conclusão da obra. Laudo pericial que constata atraso no projeto durante vigência do contrato. Parte ré que não firma aditamento após término do prazo contratual e antes da conclusão dos serviços. Desequilíbrio econômico-financeiro não verificado. Cronograma da obra que já considerava período para retificação de data e liberação de APR. Início das obras em 02.03.2016, com previsão de prazo de cinco meses de execução. Tempo de improdutividade decorrente de demora na liberação de permissão de trabalho considerado irrelevante, conforme apurado na perícia. (…)[9]

 

Diversamente, em outro precedente, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro entendeu, à luz das circunstâncias específicas do caso, que as sucessivas condutas praticadas pelo dono da obra contribuíram para o desequilíbrio do programa contratual:

 

Contrato para prestação de serviço de engenharia construtiva, com início aos 10/06/09 e término previsto para 09/12/09. Prova pericial conclusiva no sentido de que a ré/contratante dera azo ao atraso da conclusão do trabalho e ao desequilíbrio na equação econômico-financeira do contrato, notadamente, por ter ordenado o início das obras sem que o terreno estivesse em plenas condições e antes de finalizar a execução das redes de macrodrenagem de sua responsabilidade; por não ter efetuado o pagamento integral do sinal no prazo acordado, o que acarretou delonga no pagamento de fornecedores de material e descompensou o fluxo da construção e, dentre os motivos, o mais relevante, por ter demorado na definição e entrega dos projetos executivos, que, depois de várias alterações, tivera a última versão entregue em maio de 2010. (…) Desequilíbrio econômico e financeiro do pacto e quebra da justa expectativa da autora/contratada.[10]

 

A resolução de questões dessa natureza relaciona-se à incidência da denominada exceção de contrato não cumprido, por meio da qual “nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro” (Código Civil, art. 476). Mais do que uma mera defesa, legitima-se a postura da parte de não cumprir a sua obrigação enquanto esta não lhe seja exigível, devido ao não cumprimento da prestação antecedente da contraparte.[11] Deve o intérprete, à luz do programa contratual no caso concreto, perquirir o nexo de correspectividade entre as obrigações assumidas pelo construtor e pelo dono da obra, a fim de verificar se o descumprimento de qualquer delas impactará sobre o equilíbrio da relação sinalagmática.

Em contratos de construção, são também usuais as controvérsias relacionadas ao eventual impacto, no sinalagma contratual, em decorrência da necessidade de alteração do projeto a ser executado. Sobre esse ponto, no âmbito da empreitada típica, o art. 619, caput do Código Civil dispõe: “Salvo estipulação em contrário, o empreiteiro que se incumbir de executar uma obra, segundo plano aceito por quem a encomendou, não terá direito a exigir acréscimo no preço, ainda que sejam introduzidas modificações no projeto, a não ser que estas resultem de instruções escritas do dono da obra”.

Em determinado julgado, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal entendeu, com respaldo na prova pericial produzida nos autos, que as alterações efetuadas no projeto originário não ensejaram prejuízo financeiro ao empreiteiro, o qual, por essa razão, não faria jus à revisão do preço:

 

APELAÇÃO CÍVEL. CONTRATO DE EMPREITADA GLOBAL. RESPONSABILIDADE PELOS CUSTOS EXCEDENTES. ATRASO NO INÍCIO DA OBRA. DEMORA NA EXPEDIÇÃO DE ALVARÁ DE CONSTRUÇÃO. AUMENTO DE PREÇOS. NÃO COMPROVAÇÃO. ALTERAÇÕES DE PROJETO DURANTE A OBRA. SILÊNCIO DA CONSTRUTORA. SITUAÇÕES GERAIS E ABSTRATAS. AUSÊNCIA DE PROVA. MANUTENÇÃO DO CONTRATO. O contrato de empreitada global tem por natureza a fixação antecipada do custo da obra, somente se admitindo a alteração do preço contratado em caso de excepcional situação que enseje um aumento imprevisível e desproporcional do custo, em especial nas hipóteses de alterações substanciais e inéditas solicitadas pelo contratante. O atraso no início das obras, ante a demora na expedição do alvará de construção, por si só, não implica em desequilíbrio econômico do contrato, sendo ônus da construtora a comprovação de aumento efetivo dos custos. A alegação geral e abstrata de que as alterações solicitadas pelo contratante no curso da obra geraram o desequilíbrio econômico do contrato de empreitada não podem ensejar a revisão do preço contratado, máxime quando comprovado por perícia que muitas mudanças geraram a redução dos custos e não o seu incremento.[12]

 

Outro imbróglio recorrente no âmbito da construção civil diz respeito à superveniência de circunstâncias que afetem substancialmente a economia contratual. Com efeito, pode haver fatos supervenientes que impossibilitem em absoluto o cumprimento da prestação pelo empreiteiro (atraindo o regime do fortuito ou da força maior, previsto no art. 393 do Código Civil), ou fatos que, embora não impossibilitem o adimplemento, o tornem excessivamente oneroso (atraindo, eventualmente, a disciplina do art. 478 do Código Civil).

Em se tratando de contratos paritários, o exercício da autonomia negocial comporta, ainda, a possibilidade de alocação expressa de riscos resultantes de caso fortuito ou força maior, a serem assumidos por uma ou outra parte.[13] Tal alocação de riscos excepcionais, a princípio, deverá ser observada, em consonância com o disposto no art. 421-A, II, do Código Civil.

Nesse contexto, em determinado precedente envolvendo contrato de prestação de serviços de preparo de locações, terraplanagem, pavimentação e conservação de estradas, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro entendeu pela ocorrência de desequilíbrio em virtude não só de condutas imputáveis ao dono da obra (falta de disponibilização de frentes de serviços), mas também devido a circunstâncias climáticas reputadas extraordinárias, que transbordariam os riscos assumidos pelas partes:

 

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO ORDINÁRIA DE COBRANÇA. CONTRATO. ALEGAÇÃO DE DESEQUILÍBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO. PETROBRAS. SENTENÇA DE PARCIAL PROCEDÊNCIA. APELO DE AMBAS AS PARTES. PRELIMINAR DE AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO DO APELO QUE SE AFASTA. SABEMOS QUE EM NOSSO ORDENAMENTO JURÍDICO OS NEGÓCIOS JURÍDICOS BILATERAIS TORNAM-SE LEI PRIVADA ENTRE AS PARTES, VIGORANDO, PORTANTO, O CONSAGRADO PRINCÍPIO DO PACTA SUNT SERVANDA, PELO QUAL OS CONTRAENTES TÊM O DEVER DE CUMPRIR O QUE FOI LIVREMENTE PACTUADO DEVIDO À FORÇA VINCULANTE DOS CONTRATOS. PARTES QUE CELEBRARAM CONTRATO PARA SERVIÇOS DE PREPARO DE LOCAÇÕES, TERRAPLANAGEM, PAVIMENTAÇÃO, CONSERVAÇÃO DE ESTRADAS E SERVIÇOS CORRELATOS. LAUDO PERICIAL QUE FOI CONCLUSIVO QUANTO À EXISTÊNCIA DO DESEQUILÍBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO. PERITO QUE CONCLUIU QUE A FALTA DE FRENTES DE SERVIÇOS, POR CULPA DA EMPRESA RÉ, GEROU UMA IMPRODUTIVIDADE PARA A AUTORA, A QUAL DEVE SER RESSARCIDA EM R$ 4.538.349,69. EM QUE PESE AS CLÁUSULAS 16.1, 16.2 E 16.4. DO CONTRATO ENTABULADO, AFASTAREM A RESPONSABILIDADE DAS PARTES SOBRE OS FATOS DE CASOS FORTUITOS E DE FORÇA MAIOR, O PERITO CONCLUIU QUE A IMPRODUTIVIDADE OCASIONADA PELA PARALIZAÇÃO [sic] DOS SERVIÇOS EM RAZÃO DE PROBLEMAS CLIMÁTICOS FOI MUITO SUPERIOR AO RISCO QUE PODERIA TER SIDO PREVISTO PELAS PARTES, NÃO ESTANDO INCLUÍDO NO PREÇO AJUSTADO. ASSIM, DIMENSIONOU OS PREJUÍZOS SOFRIDOS PELA EMPRESA AUTORA EM RAZÃO DA IMPRODUTIVIDADE CLIMÁTICA EM R$ 1.084.128,31. COMPROVADA A EXISTÊNCIA DE DESEQUILÍBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO NO CONTRATO, NECESSÁRIA SE MOSTRA A SUA RECOMPOSIÇÃO.[14]

 

Veja-se ainda que, na empreitada típica, o Código Civil contém, no art. 625, previsão tutelando expressamente o equilíbrio contratual diante da ocorrência de determinados fatos imprevistos: “Poderá o empreiteiro suspender a obra: (…) II – quando, no decorrer dos serviços, se manifestarem dificuldades imprevisíveis de execução, resultantes de causas geológicas ou hídricas, ou outras semelhantes, de modo que torne a empreitada excessivamente onerosa, e o dono da obra se opuser ao reajuste do preço inerente ao projeto por ele elaborado, observados os preços”. Com base nesse dispositivo, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais já decidiu que:

 

O surgimento de um problema na fase de execução do contrato, decorrente de falha no projeto estrutural das fachadas e que não era passível de conhecimento na época da elaboração das propostas, caracteriza acontecimento extraordinário e imprevisível que repercute no equilíbrio financeiro da relação.[15]

 

Os precedentes examinados, ao enfrentarem controvérsias atinentes a possíveis desequilíbrios contratuais, decidiram-nas com base nas estipulações contratuais acordadas pelas partes ou em remédios já consagrados no ordenamento, mormente porque a disciplina típica da empreitada tutela o equilíbrio contratual em diversos dispositivos (tais como os arts. 620 e 625 do Código Civil). Nada impede, todavia, que o princípio do equilíbrio contratual seja invocado de forma autônoma para resolver controvérsias dessa natureza, até mesmo, em hipóteses excepcionais, indo de encontro às próprias regras entabuladas entre as partes, se for o caso.

Ao contrário do que se possa pensar, o reconhecimento do equilíbrio contratual como princípio autônomo não demanda a equivalência absoluta entre as prestações assumidas pelas partes, mas sim um controle de proporcionalidade, de modo a evitar discrepâncias significativas. Em matéria contratual, afirma Perlingieri, o princípio da proporcionalidade serve “não para impor uma equivalência entre prestações, mas para evitar uma desproporção excessiva e injustificada entre elas”[16], de modo a exigir do intérprete o controle de merecimento de tutela da composição negocial.

Mesmo nas relações paritárias (como é o caso dos contratos examinados neste artigo), o ingresso em relações jurídicas desequilibradas deve ser excepcional e, se for o caso, escrutinizado à luz de alguma circunstância merecedora de tutela (tal como a concessão de liberalidade à contraparte ou a alocação expressa de determinado risco).[17] Em não havendo fundamento que justifique a desproporcionalidade substancial das prestações, justificar-se-á a intervenção judicial em prol do reequilíbrio da composição negocial.[18]

O princípio do equilíbrio contratual impõe, por exemplo, o escrutínio das cláusulas de assunção deliberada de risco, mesmo nas relações paritárias, vedando-se alocações incompatíveis com o ordenamento jurídico.[19] No âmbito da construção civil, é de se questionar, por exemplo, se as partes poderiam afastar, por meio de expressa disposição contratual, a responsabilidade do construtor pela solidez e pela segurança do trabalho, estabelecida no art. 618 do Código Civil. Nos contratos típicos de empreitada, entende-se que, por se tratar de norma cogente, as partes não poderiam afastar ou reduzir a garantia legal.[20]

Indagação tormentosa se põe em relação ao contrato atípico de EPC, o qual, a rigor, não está adstrito à disciplina legal da empreitada. Quando as partes resolvem aderir a determinado tipo, fazem-no cotejando o objetivo que pretendem alcançar com o contrato com a disciplina legislativa aplicável àquele tipo específico.[21] Se, diferentemente, o regramento legal aplicável ao tipo for inapropriado para se atingir o escopo do contrato, poderão as partes, fugindo do esquema legislativo, celebrar um contrato atípico.[22]

Não obstante, em determinadas hipóteses, pode-se cogitar da aplicação, por analogia, de norma jurídica prevista pelo legislador com relação a um tipo contratual semelhante, contanto que não se viole a autonomia das partes contratantes ao fugirem do tipo legislativo. No caso do EPC, afirma-se, em doutrina, que, mesmo em se tratando de um negócio atípico, a consecução do escopo contratual não poderia prescindir da garantia de solidez e segurança, estabelecida no art. 618 do Código Civil para a empreitada.[23]

Feitas essas breves considerações a respeito dos riscos e da busca pelo delicado equilíbrio dos contratos de construção civil, cabe, por fim, uma última reflexão a respeito do papel desempenhado pela boa-fé nas situações de desequilíbrio. O princípio da boa-fé, como norma comportamental, impõe às partes deveres de conduta até mesmo nas situações de desequilíbrio, nas quais a cooperação entre elas se faz ainda mais necessária.[24] Fruto da cooperação inerente à boa-fé, a parte prejudicada pelo desequilíbrio deve noticiar prontamente tal circunstância à contraparte, devendo esta prontificar-se a renegociar os termos contratuais, com vistas à recuperação do equilíbrio da relação.[25]

Também nos contratos de construção, discutidos neste artigo, a boa-fé impõe o dever anexo de cooperação entre o construtor e o tomador em situações de desequilíbrio. Consoante reconhece Clóvis do Couto e Silva: “Em todos os modelos contratuais, as obrigações típicas são enriquecidas com a aplicação do princípio da boa-fé, e o contrato de empreitada não constitui exceção a essa regra”[26].

 

Victor Willcox

Mestre e Doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Pesquisador Visitante (Postdoctoral Fellow) no Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences Po).

 

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[1] “Infraestrutura requer investimento de R$ 3,7 trilhões nos próximos 10 anos, segundo BNDES”, Valor Econômico, 05/06/2023. Disponível em: https://valor.globo.com/brasil/noticia/2023/06/05/infraestrutura-requer-investimento-de-r-37-trilhoes-nos-proximos-10-anos-segundo-bndes.ghtml.

[2] ROPPO, Enzo. O contrato. Tradução de Ana Coimbra e M. Januário C. Gomes. Coimbra: Almedina, 1988. p.11.

[3] “Based on the statistics gathered in the past three decades on topics, such as disputes in the construction industry and international arbitration, accidents at work and exposure to natural hazards around the world, it can be concluded that construction projects are sensitive to an extremely large matrix of hazards and thus to risks. This sensitivity is due to some of the inherent characteristics of construction projects, which are summarised as follows:

(a) The time required to plan, investigate, design, construct and complete a construction project spans such a lengthy period that it is often greater than the period of cyclical recurrence, known as the ‘return period’, of many of the hazards to which such projects are exposed. For example, the hazard of rainfall has usually a return period of one year depending on the time for the rainy season. Therefore, the risks associated with rainfall on a particular project would have to be assessed and managed for the number of years taken to complete it. Any reduction in the period of construction introduces its own risks.

(b) The number of people required to initiate, visualise, plan, finance, design, supply materials and plant, construct, administer, supervise, commission and repair any defects in a construction project is enormous. Such people usually come from different social classes and in international contracts, from different countries and cultures.

(c) Many civil engineering projects are constructed in isolated regions of difficult terrain, sometimes stretching over extensive areas and exposed to natural hazards of unpredictable intensity, frequency and return period.

(d) The materials selected for use generally include a number of new products of unproved performance or strength. Advanced and complex technology is also necessary in some construction projects.

(e) Extensive interaction is required between many of the firms involved in construction, including those engaged as suppliers, manufacturers, subcontractors and contractors, each with its own different commitments and goals.

(f) Construction projects are susceptible to risk cultivation by the parties themselves or by others associated with them or advising them” (BUNNI, Nael G. Risk and insurance in construction. 2. ed. Londres. Spon Press, 2003. p. 31-32).

[4] SILVA, Clóvis V. do Couto e. Contrato de engineering. In: Revista dos Tribunais, vol. 685, nov./1992, p. 29-40.

[5] “Trata-se (…) de contratos extremamente complexos em relação aos quais é questionável a aplicação, mediante simples subsunção e sem os devidos temperamentos, dos dispositivos de lei referentes à empreitada. Independentemente, contudo, da qualificação desses contratos como empreitada tout court ou como contrato atípico, o certo é que as suas principais características em muito se assemelham, permanecendo como prestação principal a entrega da obra em termo certo” (TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena; BODIN DE MORAES, Maria Celina. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República, v. 2. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 347).

Na jurisprudência: “O contrato sob regime turnkey, embora não previsto expressamente na legislação civil brasileira, assemelha-se em muito ao contrato de empreitada integral, porquanto a contratada assume a execução e o gerenciamento de todas as etapas do projeto, incumbindo-lhe a entrega da obra finda, testada e em condições de imediata operabilidade, daí o termo ‘chave na mão’, em tradução literal, visto que, uma vez ultimado o serviço, basta ao dono da obra ingressar no empreendimento” (TJRJ, Apelação n. 0149775-04.2011.8.19.0001, Rel. Des. Carlos Eduardo da Fonseca Passos, 18ª Câmara Cível, j. 11/12/2019).

[6] Não foram localizados julgados do Superior Tribunal de Justiça que, no mérito, tenham se debruçado sobre essas questões, por conta das limitações inerentes aos recursos constitucionais. Nesse sentido, por exemplo: “No tocante ao alegado desequilíbrio econômico-financeiro do contrato de empreitada (e consequente onerosidade excessiva), não se revela cognoscível a insurgência especial, uma vez que, para suplantar a cognição estadual (…), revelar-se-iam imprescindíveis a interpretação das cláusulas pactuadas e o reexame do acervo fático-probatório dos autos, providências inviáveis no âmbito do julgamento do recurso especial, ante os óbices das Súmulas 5 e 7 do STJ” (STJ, AgInt no REsp 1.875.167/DF, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, j. em 07/12/2021).

[7] TJSP, Apelação nº 1003906-05.2017.8.26.0157, 17ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Irineu Fava, j. em 29/06/2022.

[8] Consideram-se “(…) como bilaterais os contratos em que há nexo de reciprocidade entre as obrigações de ambas as partes, criando vínculo funcional entre as prestações correspectivas. A esse nexo denomina-se sinalagma, e por isso os contratos bilaterais são referidos como sinalagmáticos, com significativas repercussões jurídicas, como a possibilidade de o credor vítima de inadimplemento reter sua própria prestação (exceção de contrato não cumprido) e resolver o contrato (cláusula resolutiva tácita” (TEPEDINO, Gustavo; KONDER, Carlos Nelson; BANDEIRA, Paula Greco. Contratos. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p.71).

[9] TJSP, Apelação nº 1037879-28.2017.8.26.0002, 36ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Walter Exner, j. em 09/02/2023.

[10] TJRJ, Apelação nº 0021783-18.2011.8.19.0209, 18ª Câmara Cível, Rel. Des. Maurício Caldas Lopes, j. em 28/07/2021.

[11] Sobre o tema, v.: BUTRUCE, Vitor Augusto José. A exceção de contrato não cumprido no Direito Civil brasileiro contemporâneo: funções, pressupostos e limites de um “direito a não cumprir”. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2009.

[12] TJDF, Apelação n.  00195724520158070001 DF 0019572-45.2015.8.07.0001, Rel. Des. Carmelita Brasil, j. em 21/06/2019, 2ª Turma Cível.

[13] “Podem os contratantes, no exercício legítimo de sua autonomia negocial, modificar o quadro normativo do fortuito desenhado pelo legislador. Não havendo partes vulneráveis, é possível a alteração das hipóteses de isenção e de assunção de responsabilidade, com a distribuição dos riscos por meio das cláusulas contratuais. Constrói-se, assim, a delicada alocação de riscos contratuais que configura o equilíbrio contratual, a ser tutelado como expressão da liberdade de contratar. Isso pode ocorrer expressamente, por meio da ampliação das excludentes do dever de indenizar, como, por exemplo, pelos chamados ‘fortuitos equiparados’, ou por sua restrição, com a assunção contratual de certos riscos” (KONDER, Carlos Nelson; KONDER, Cíntia Muniz de Souza. A contratualização do fortuito: reflexões sobre a alocação negocial do risco de força maior. In: TERRA, Aline de Miranda Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Inexecução das obrigações: pressupostos, evolução e remédios. Rio de Janeiro: Processo, 2021, v. 2, p. 56).

[14] TJRJ, Apelação nº 0462000-75.2014.8.19.0001, 14ª Câmara Cível, Rel. Des. Cleber Ghelfenstein, j. em 08/06/2022.

[15] TJMG, Apelação nº 10024110819711001, 11ª Câmara Cível, Rel. Des. Mônica Libânio, j. em 20/02/2018.

[16] PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. Tradução de Maria Cristina de Cicco. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 411.

[17] “É notório que, em uma economia de mercado, os contratantes perseguem a maximização do seu próprio lucro. Entretanto, exatamente porque tal estratégia afigura-se comum a ambas as partes, há uma expectativa intrínseca dos próprios contratantes de que o contrato, como resultado do embate entre interesses contrapostos, exprima equilíbrio entre as posições situadas em relativa paridade. (…) [O]s contratantes presumidamente ingressam em relações equilibradas. Se deixam de fazê-lo por alguma razão merecedora de tutela (e.g., prática de uma liberalidade, assunção deliberada de um risco para maximizar seus ganhos), é preciso que tal razão possa ser inequivocamente extraída do contrato celebrado, sob pena de se valer o intérprete da presunção de que ocorre, no caso concreto, exatamente aquilo que ocorre no comum dos casos: a busca de relações contratuais equilibradas” (SCHREIBER, Anderson. Equilíbrio contratual e dever de renegociar. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 206).

[18] Segundo Rodrigo da Guia Silva: “(…) o princípio do equilíbrio contratual (…) desempenha a importante função de promover o respeito e a preservação, na maior e mais eficiente extensão possível, do programa originário reputado legítimo pelo ordenamento – cuja observância é imposta, como se sabe, pelo princípio da obrigatoriedade dos pactos, corolário fundamental da autonomia privada. Não se trata de pugnar por uma mitigação do comando traduzido no princípio da obrigatoriedade dos pactos, mas sim de reconhecer a necessidade de uma releitura funcional deste último, em conformidade com o caráter cada vez mais dinâmico do regulamento contratual de interesses” (SILVA, Rodrigo da Guia. Um novo olhar sobre o princípio do equilíbrio contratual: o problema das vicissitudes supervenientes em perspectiva civil-constitucional. In civilistica.com, v. 10, n. 3, p. 32, 7 dez. 2021).

[19] Nesse sentido: “O respeito à repartição de riscos efetuada pelos contratantes, em uma palavra, preserva o equilíbrio contratual, desde que essa alocação de riscos observe os demais valores e princípios que integram o sistema jurídico – complexo e unitário” (BANDEIRA, Paula Greco. O contrato como instrumento de gestão de riscos e o princípio do equilíbrio contratual. In Revista de Direito Privado, São Paulo, v. 65, p. 195-208, 2016).

[20] Nesse sentido: “(…) a lei faz referência expressa à irredutibilidade do prazo, deixando claro que se trata de norma cogente, sendo nula de pleno direito cláusula que preveja a diminuição do prazo de garantia da obra” (SCHREIBER, Anderson; TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando; MELO, Marco Aurélio Bezerra de; DELGADO, Mário Luiz. Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 371-372).

[21] Sobre o tema, v.: WILLCOX, Victor. Contratos atípicos no Direito Brasileiro: Breves reflexões. In: Revista Brasileira de Direito Contratual, v. 15 (abr./jun. 2023). Porto Alegre: Magister, 2019, p. 130-154.

[22] “A celebração de contratos atípicos implica sempre o repúdio por parte dos contratantes de um ou mais tipos contratuais legais. Este repúdio é motivado pela constatação da inconveniência dos tipos contratuais legais disponíveis para a satisfação do interesse contratual, ou da sua inabilidade para assegurar as finalidades que movem as partes a contratar. Por uma razão ou por outra, o regime dos tipos contratuais legais disponíveis é considerado indesejável. É preciso, então, construir um contrato diferente. A construção de um contrato diferente, de um contrato atípico, é feita, ou pela modificação de um ou mais tipos que sejam susceptíveis de, uma vez modificados, satisfazerem o interesse contratual, ou através da construção “ex novo” de um contrato que não resulte da adaptação dos tipos existentes. O repúdio do tipo legal tem sempre a ver com o carácter indesejável para as partes da disciplina jurídica que resultaria da sua adopção.

A selecção do tipo contratual a partir das vantagens ou inconvenientes do seu regime jurídico próprio é uma constante do direito dos contratos e da prática contratual. As partes escolhem o tipo contratual que mais lhes convém tendo em atenção as circunstâncias, os objetivos que pretendem alcançar e as vantagens e desvantagens implicadas” (VASCONCELOS, Pedro Pais de. Contratos atípicos. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2009, p. 353-354).

[23] Nesse sentido: “(…) a obrigação de construir com solidez e segurança é essencial, elemento integrador do tipo, que, ipso facto, não pode ser afastada – nem ela, nem suas consequências – pela autonomia da vontade das partes. E essa inafastabilidade atingirá todos os contratos de construção, abrangendo todas as modalidades de empreitada e o contrato de EPC, dentre outros. A alocação dos riscos, que é inerente aos contratos de EPC, se dá dentro de limites dentre os quais os ditados pelas regras de ordem pública e pelas normas essenciais do tipo contratual” (MATHIAS, Guilherme Valdetaro. A cláusula de não indenizar e a obrigação de construir com segurança e solidez. In: Migalhas de Responsabilidade Civil. 01 jun. 2023. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/387514/clausula-de-nao-indenizar-e-obrigacao-de-construir-com-seguranca).

[24] Segundo Judith Martins-Costa: “O princípio da boa-fé objetiva atua no plano da validade nas hipóteses subsumidas no art. 51, inc. IV, do CDC, visando coibir o desequilíbrio. Nas demais hipóteses, abrangidas pelo Código Civil ou subsumidas na regra do art. 6.º, inc. V, segunda parte, ou é dispensável o chamamento do princípio da boa-fé – já que o princípio do equilíbrio, concretizado em institutos legalmente previstos, tem sua própria operatividade – ou caberá chamá-lo como norma comportamental, pautando a atuação das partes quando da aplicação e/ou renegociação das cláusulas de acomodação do contrato às circunstâncias, recaindo na esfera da atuação da boa-fé como princípio incidente ao exercício jurídico” (MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. 2. ed. [Kindle] São Paulo: Saraiva Educação, 2018, posição n. 12.482).

[25] Segundo Anderson Schreiber, “(…) tanto o dever de avisar prontamente a contraparte acerca do desequilíbrio contratual identificado, quanto o dever de ingressar em renegociação com vistas a obter o reequilíbrio do contrato constituem deveres de conduta que, conquanto instrumentalizados à recuperação do equilíbrio contratual, derivam, a rigor, da necessidade de que as partes cooperem entre si para a concretização do escopo contratual” (SCHREIBER, Anderson. Equilíbrio contratual e dever de renegociar. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 294).

[26] SILVA, Clóvis V. do Couto e. Contrato de engineering. In: Revista dos Tribunais, vol. 685, nov./1992, p. 29-40.